Da Estética à dinâmica dos afetos de Baruch Espinosa

Na vastidão do universo, em algum ponto entre o que podemos sentir e o que somos capazes de compreender, encontramos a dinâmica dos afetos de Espinosa e a etimologia da palavra estética. Esse confronto não se dá sem inquietações, pois ao adentrar as profundezas do pensamento espinosano, não é difícil ser engolido pelas complexas camadas que emergem dos afetos, assim como somos engolidos pela linguagem quando tentamos nomear aquilo que é sensível. O afeto e a estética se entrelaçam como uma corrente invisível que nos arrasta sem que possamos resistir.

10/10/20243 min read

Espinosa nos propõe que os afetos são o movimento que nos anima e nos define. Não temos controle pleno sobre eles, pois somos passivos em grande parte da experiência afetiva. O corpo, sempre sujeito às influências externas, é constantemente afetado de modo a torná-lo mais ou menos capaz de agir. O homem, em sua condição limitada, é uma criatura à mercê de forças que não compreende por completo. Esse estado de submissão, no entanto, não é apenas um sinal de fraqueza; ele revela o modo como o mundo nos atravessa e como as outras partes do universo se entrelaçam em nossa existência.

De maneira estranhamente semelhante, a palavra estética também carrega consigo a marca dessa passividade. Derivada do grego "aisthesis", seu significado original é "percepção pelos sentidos", na língua portuguesa não temos tradução literal da palavra. Estética, em sua raiz, não é uma faculdade ativa de julgamento, mas antes uma recepção. Nós não decidimos o que nos afeta, mas somos tomados, invadidos, por aquilo que os sentidos capturam. Assim como os afetos nos envolvem sem pedir licença, a estética começa com essa invasão do sensível, do que é percebido, do que nos atinge antes mesmo de podermos pensar. Há, portanto, uma profunda conexão entre o afeto espinosano e a estética: ambos dependem daquilo que nos afeta de fora, aquilo que nos toma de surpresa e que, muitas vezes, está fora do alcance de nossa razão ou vontade.

Mas como Espinosa poderia ver a estética, se ele estivesse ciente do conceito como o entendemos hoje? Ele não teria se prendido à superficialidade de beleza ou arte, pois para ele o importante seria compreender o que nos torna mais ou menos aptos a perseverar na existência. A estética, sob esse prisma, não se limitaria a ser um julgamento de gosto; seria uma força que, ao nos atingir, transforma nossa própria capacidade de existir. Assim, a obra de arte, o belo, o sublime – não seriam apenas objetos a serem contemplados, mas agentes que modificam a nossa potência de ser.

Ao mesmo tempo, a estética moderna se desvencilhou de suas origens etimológicas. No decorrer do tempo, tornou-se uma ciência do gosto, do belo, do julgamento racional. Um desvio, talvez, em relação ao que poderia ter sido, se o entendimento espinosano dos afetos tivesse prevalecido. Se aceitássemos que a estética é, antes de tudo, o que nos afeta, o que nos toca sem que possamos impedir, a experiência estética seria um campo de forças, de ações e reações que nos moldam.

Espinoza, mais um esteta?

No entanto, tanto na estética quanto nos afetos, o ser humano está em uma posição desconcertante. Ele não é completamente senhor de si mesmo. A experiência estética nos coloca de frente para algo que não podemos controlar; assim como os afetos, somos expostos a algo maior, que nos arrebata sem nossa permissão. Cada estímulo sensível, assim como cada afeto, nos arrasta para uma dança caótica de forças, onde a busca pela autonomia é sempre frustrada pela nossa própria condição de seres determinados por algo que nos ultrapassa.

Nesse jogo trágico, percebemos a angustiante semelhança entre a passividade dos afetos e a passividade da percepção estética. Não escolhemos o que nos afeta, mas somos constantemente afetados. A estética, então, deixa de ser uma ciência do julgamento, do gosto, da apreciação crítica, para se tornar um campo de embates, onde o indivíduo é moldado e transformado por aquilo que o atravessa. Essa é a essência do estético: ser afetado pelo mundo, ser moldado por aquilo que os sentidos captam, assim como somos moldados pelos afetos que Espinosa tão profundamente analisa.

À medida que avançamos na compreensão dessa relação entre os afetos e a estética, nos tornamos cientes de nossa própria vulnerabilidade. O indivíduo, ao ser afetado, revela-se não como um sujeito soberano, mas como um ser em constante mudança, cuja identidade é moldada por aquilo que lhe afeta e por como reage a esses estímulos. Tanto Espinosa quanto a estética nos revelam a mesma verdade incômoda: somos sempre outro, à mercê de forças que não compreendemos, que nos modificam, que nos invadem e transformam, tornando-nos estranhos a nós mesmos.

E, ao final, o que resta? Uma existência marcada pela incessante tentativa de se equilibrar entre o que nos afeta e o que conseguimos articular como sentido. A estética, assim como os afetos, nos leva a perceber que a vida é um processo contínuo de ser afetado e de tentar, sem muito sucesso, fazer sentido disso. Talvez, no fundo, toda nossa relação com o mundo se resuma a isso: uma luta kafkiana para articular o inarticulável, compreender o incompreensível, enquanto o mundo nos afeta, nos escapa e nos transforma de maneira irreversível.

Entre afetos e estética

A vulnerabilidade humana na experiência sensível