Entre o Grito e o Eco: A Limitância que milita, breves reflexões sobre nossa falência.
"Militância ou limitância?" é uma provocação afiada sobre a natureza da ação coletiva, sobre a linha tênue entre a busca ativa por transformação e o perigo de enrijecer as ideias em dogmas que aprisionam. Quando falamos de militância, invocamos o espírito de luta, o compromisso em questionar e modificar a realidade; é um ato de resistência que exige energia, propósito e, sobretudo, uma visão crítica para além do presente. No entanto, a prática militante também pode se tornar uma "limitância" quando os meios se sobrepõem aos fins, quando a fidelidade ao movimento ou à causa se transforma numa armadura rígida, sufocando a abertura para a dúvida e para a autocrítica. Portanto, aqui está um convite para repensar o papel de nossas lutas, para questionar continuamente se estamos abrindo espaço para mudanças reais ou se estamos apenas levantando muros novos.
11/1/20249 min read

Ora, aqui o paradoxo é agudo: o próprio conceito de “militância” carrega consigo o peso do militar, do conflito organizado, do alinhamento inquestionável. A língua, que deveria servir ao espírito, trai-nos. Invoca-se uma luta pela liberdade, mas ela se dá sob um molde de obediência, como se cada soldado de uma causa portasse uma etiqueta de “vida subalterna.” Em vez de se libertar, a mente é treinada para marchar, para obedecer, e, assim, aquilo que é chamado de “movimento” revela-se uma máscara da estagnação. Não estaríamos, então, alimentando a própria estrutura que queremos derrubar, limitando nossos ideais à esfera dos exércitos invisíveis, onde todos marcham mas ninguém avança?
Militância exige movimento, mas a transformação requer flexibilidade — sem ela, corre-se o risco de cair no que alguns chamam de "militância de identidade," onde a lealdade ao grupo ou à ideia se sobrepõe à própria razão de existir do movimento. Assim, militância se transforma em limitância quando o ato de questionar se perde, e em vez de transformar, a militância começa a limitar, definindo fronteiras, excluindo e reduzindo-se a discursos repetidos.
O termo “militância” guarda uma contradição em sua própria origem, pois deriva de “militar,”(me corrijam se estiver errado) um conceito vinculado ao exército, ao conflito organizado e à obediência a comandos hierárquicos. Quando aplicamos esse termo a movimentos sociais, a aspiração coletiva pela liberdade, diversidade de ideias e transformação pacífica parece colidir com o próprio vocabulário que escolhemos. Uma militância verdadeira deveria buscar a emancipação e a liberdade, enquanto a ideia de "militar" traz consigo conotações de disciplina rígida e obediência, justamente o oposto do que o povo, em sua essência, precisa para atuar e promover mudanças significativas.
O militarismo é, por definição, centralizado e autoritário, funcionando melhor dentro de um sistema de ordens, regras e hierarquias imutáveis. Porém, a necessidade popular reside na flexibilidade, na escuta e no compartilhamento de ideias diversas. A verdadeira transformação surge do diálogo horizontal e da cooperação, enquanto a lógica do “militar” tende a levar a uma visão de “nós contra eles,” de um embate em que uma única “vitória” seja possível. Assim, a militância corre o risco de transformar a própria causa em uma guerra de trincheiras, onde a abertura ao novo e ao plural se torna limitada por slogans repetidos e lealdades cegas.
Adotar uma linguagem que remeta ao militarismo pode fazer com que movimentos sociais incorporem, inconscientemente, práticas que não se alinham aos objetivos de liberdade e justiça. Ao militarizar as causas, arriscamo-nos a replicar as mesmas estruturas que muitas vezes queremos derrubar. Um movimento verdadeiramente transformador talvez não precise de “militantes” com disciplina de combate, mas de uma união de vozes autênticas, compostas por sujeitos conscientes, críticos e abertos ao diálogo. Para o povo, a força real está na construção coletiva, na convergência de ideias e, sobretudo, na liberdade de questionar e criar sem as amarras de uma hierarquia militarizada.
Carl Jung propôs a ideia de um “Self Coletivo” – uma consciência compartilhada que transcende o indivíduo e conecta todas as pessoas a uma memória e sabedoria ancestrais, presente no que ele chamou de “inconsciente coletivo.” Nesse contexto, os arquétipos e símbolos são expressões desse inconsciente, atuando como guias para o entendimento das nossas experiências e do mundo. Se considerarmos a militância sob essa ótica, a luta por transformação social deveria, teoricamente, ressoar profundamente com o Self Coletivo, refletindo as necessidades e aspirações de uma consciência compartilhada pela humanidade.
No entanto, quando a militância adota práticas de militarização, surge uma contradição essencial. Em vez de estar a serviço dessa consciência maior, ela se torna fechada, menos acessível aos símbolos que nutrem o entendimento profundo e a união. Movimentos que incorporam atitudes combativas, voltadas ao enfrentamento e à hierarquia rígida, muitas vezes bloqueiam o "fluxo" do inconsciente coletivo, impondo estruturas e práticas que inibem a conexão genuína com o Self Coletivo. Esse desvio pode fazer com que a causa perca sua autenticidade e se distancie da sabedoria coletiva, enrijecendo-se em moldes que se assemelham à própria opressão que ela deseja combater.
O self coletivo propõe uma união de identidades, onde a subjetividade individual se submerge em um senso de pertencimento ao grupo. Mas será que esta fusão resulta em algo coeso, ou será que nos torna partes de uma máquina que nos despersonaliza? Nessa unidade, o indivíduo não se define mais pelo próprio "eu", mas sim pela sua função dentro da coletividade. Tal como o soldado em uma marcha, sua singularidade dissolve-se e, pouco a pouco, cede à homogeneidade do todo. E, embora essa fusão possa parecer uma defesa contra a solidão existencial, ela também pode ser uma barreira à expressão genuína e ao autoentendimento, transformando o indivíduo num reflexo pálido dos ideais do grupo.
Militância ou Limitância?

O significante e o significado abrem um abismo entre a intenção e a compreensão. Ao expressarmos uma ideia, usamos palavras e símbolos que carregam nossa intenção – o significante – mas estes não garantem que o significado pretendido chegue à outra pessoa de forma intacta. Em um grupo militante, a complexidade desse processo de comunicação é ainda mais evidente: as palavras de ordem, as frases de efeito, os emblemas, todos convergem para algo que deveria unir, mas que, paradoxalmente, pode dividir. O que cada indivíduo compreende ao ouvir um termo comum do grupo é tingido por sua experiência pessoal, criando uma miríade de interpretações que fragilizam a suposta coesão.
Jung nos sugeriria que a verdadeira transformação nasce de um processo chamado individuação – uma jornada que exige introspecção, uma escavação paciente e muitas vezes dolorosa das profundezas do ser. Pois bem, como esperar que a libertação coletiva surja de uma estrutura militarizada, onde a individuação é suprimida em prol de uma marcha uníssona, onde as vozes dissonantes são esmagadas por uma necessidade de unidade cega? Não deveríamos estar criando espaço para cada ser caminhar em sua própria senda, contribuindo com a riqueza de suas descobertas e não com a dureza de suas convenções?
E aqui, quando se busca o Self Coletivo, ele não se encontra, pois se dissolve na repetição, no eco das palavras que já perderam seu poder estético. Em vez disso, somos sugados para o caos, onde o espírito militante, preso à rigidez, se afoga. Aquilo que poderia ser uma força transformadora resvala na mesmice, reduzindo a causa a um exército de corpos sem alma, vazios de sentido, como a face de um manequim que não vê.
A militância autêntica, se é que tal coisa existe, talvez não necessite de rigidez, mas de fluidez – de uma união de almas que compartilham ideias, livres da clausura das bandeiras e dos slogans. Militância não deveria significar "militar", para então "Marchar", mas um retorno à nossa essência comum, à conexão simbólica e sincera, onde o indivíduo e o coletivo se nutrem reciprocamente, onde não há ordens, mas entendimento, onde não há obediência cega, mas clareza compartilhada.
O mundo precisa de uma militância que abrace a diferença, a singularidade, e que permita que cada um seja uma faísca que ilumina, não uma peça que apenas preenche. E, no entanto, continuamos a marchar como soldados de cabeça de papel.
Assim, a psique coletiva se vê distorcida. A militância engessada erige muros em vez de pontes, prende-se a símbolos que já não falam ao inconsciente, mas às suas próprias sombras. Ao militarizar as causas, não apenas repetimos, como espelhamos os traços daquilo que combatemos. Ao invés de elevar o povo ao diálogo com seu próprio espírito, afundamo-lo em uma cacofonia de ordens e lealdades cegas. Em que ponto a busca pela verdade se perdeu na bruma? Em que momento o grito de liberdade tornou-se um sussurro de conformidade?
Assim, o coletivo, com sua estrutura de signos e significados compartilhados, corre o risco de aprisionar a identidade individual em um universo onde o signo se impõe à verdade e onde o significante se perde do significado. Cada ato, cada ideia, cada símbolo do grupo se torna uma repetição sem reflexão, um gesto que nos aproxima de uma versão artificial de pertencimento. É uma farsa quase trágica: no esforço por estabelecer uma identidade comum, o grupo se torna o paradoxo da identidade perdida, onde os membros se alienam não só dos outros, mas de si mesmos.
Mais do mesmo

É certo que a militância, no fundo, talvez se assemelhe mais a uma dança compassada em que poucos passos são realmente criativos e inovadores, enquanto o restante segue regras firmes, tangendo um mesmo compasso ininterrupto. Contudo, a solução para tal dança aprisionadora não se encontra numa revolução vazia de palavras gritadas, mas numa reorganização lenta e tortuosa dos movimentos, uma libertação silenciosa das correntes invisíveis que tanto aprisionam.
Primeiro, uma verdadeira solução começa pela desconstrução completa do próprio propósito da militância. É necessário, acima de tudo, que cada indivíduo ceda a um doloroso silêncio, um estado de confronto consigo mesmo. Como um espelho côncavo, deve confrontar o que quer e o porquê quer, recusando o eco das palavras alheias. Esse processo de isolamento de ideias, ao contrário do alarde coletivo, carrega a força de uma revolução solitária e evita o enfraquecimento que o discurso repetido invariavelmente traz. A militância, ao invés de insistir na coletividade vazia, deve aprender a valorizar a voz que só o silêncio permite ouvir.
Uma segunda saída encontra-se na aceitação do contraditório, um exercício que não recorre aos alicerces seguros das certezas ideológicas. Ao invés de se abrigar num monólito de ideias fixas, o militante deve fazer do paradoxo uma filosofia de ação. Abraçar simultaneamente a contradição e o desconhecido — tal é o caminho para livrar-se do cárcere de um ideal rígido e pouco elástico. Quando se aceita a complexidade, abandona-se a necessidade de combater pela pureza de um propósito e emerge, pela primeira vez, um tipo novo de militância, que não teme a fluidez.
Aqui, surge o terceiro movimento rumo a uma solução. O verdadeiro militante não deveria buscar a imposição de verdades, mas a construção de uma comunidade de perguntas, uma militância que não fizesse da resposta um produto final. É o ato de interrogar sem parar que move, que desfaz as amarras. Porque, no fundo, a verdade de um movimento não se encontra nas afirmações, mas nos espaços deixados em aberto pelo diálogo contínuo. Criar um espaço onde se possa questionar indefinidamente é um convite à própria liberdade.
Por fim, uma solução radical: a libertação do próprio desejo de domínio. Uma militância que pretenda a mudança precisa abraçar a renúncia a uma identidade rígida ou tradições, que por sinal as únicas que estão de pé foram as que abraçaram o desconhecido do autoquestionamento. É na capacidade de se desfazer de sua própria forma que o militante encontra liberdade para agir. Sem essa renúncia, toda militância se transforma numa limitância — o ego que se ergue como uma muralha, apagando a real capacidade de transformação. Somente ao abrir mão da própria figura, da própria imagem, que o movimento encontra a verdadeira renovação.
Essas soluções, na crueza da prática, são menos uma fuga para o ideal e mais uma aceitação das contradições e das sombras. Como um espelho quebrado que reflete imagens incompletas, a militância redescoberta é aquela que renuncia à perfeição e ao controle, permitindo-se, paradoxalmente, ser moldada pelo próprio caos que busca combater.
Hoje, os movimentos sociais tornaram-se espelhos das distorções que deveriam denunciar. Eles prometem a salvação do mundo, mas não conseguem sequer enxergar o terreno sobre o qual marcham. Como em um teatro grotesco, cada manifestante se torna personagem de uma farsa mal ensaiada, onde a realidade é descartada em prol de uma narrativa fictícia que nunca se concretiza. A desconexão com o mundo material é tamanha que qualquer tentativa de diálogo com a realidade se dissolve diante da histeria coletiva. Aquele que ousa lembrar ao grupo que o chão é real e a gravidade existe é sumariamente silenciado, rejeitado como um traidor dos “nobres” princípios que, no fundo, ninguém compreende.
Por fim, a ironia suprema: estes movimentos se definem por seu amor à liberdade, mas em seus gestos frenéticos e palavras vazias, aprisionam-se a uma liberdade fantasiosa. A liberdade, nesse caso, não é mais do que um eco desgastado, um conceito idealizado que nada sabe da realidade e que nada tem a oferecer além do sofrimento que tanto dizem combater. Eles clamam por mudança, mas permanecem fiéis a um desespero que cresce ao ritmo de seus próprios gritos. Na crença de que podem criar um novo mundo, destroem o que de humano ainda resta em si mesmos, esquecendo que a verdadeira revolução não é um rugido ensurdecedor, mas um sussurro constante, imune às máscaras e ao espetáculo.
Assim, os movimentos sociais de hoje tornam-se seus próprios carcereiros, prisioneiros de uma ilusão que cresce, dia após dia, até engolir o que de verdadeiro e possível ainda poderia existir. Cada bandeira que se ergue é, no fundo, mais um símbolo da cegueira que os guia. Movidos pela crença de estarem marchando rumo ao futuro, caminham, cegos e sem rumo, para o nada absoluto.
E agora?
