Necrosapiens: A Morte Silenciosa da Consciência Individual no Sistema Capitalista

Em algum ponto onde os limites entre o ser e o não-ser tornam-se indistintos, o homem se vê imerso em uma rotina que não mais questiona, que não mais se indaga. Ele caminha por um mundo onde as horas se atropelam, onde os dias se desfazem em uma sucessão de tarefas mecanicamente cumpridas. O olhar vazio, o gesto automático, o corpo que se desloca sem rumo, tudo isso se tornou parte de sua essência. Ele já não sabe quem é, nem o que faz, apenas executa, sempre para mais, sempre sem parar, num movimento incessante que o mantém preso, mas que, ao mesmo tempo, o dissolve. Assim, entre o esforço e o desespero, ele não percebe que, ao tentar manter-se vivo, na verdade está caminhando para uma morte silenciosa e progressiva. O homem moderno, transformado em mero instrumento de uma máquina maior, não compreende que sua própria existência se perde no fluxo interminável de consumo e produção. Ele é parte de algo imenso, algo que o consome e o engole, mas que nunca o reconhece como ser. A cada passo, sua humanidade se esvai, e ele se torna uma sombra, uma figura desconectada de si mesma, mas ainda tentando se agarrar àquilo que um dia foi. Não há espaço para o sonho, para o desejo, para a dúvida. A sua vida se resume a um movimento constante, uma busca frenética por um futuro que jamais chega, e, ao mesmo tempo, ele se encontra irremediavelmente distante de qualquer passado que pudesse lhe oferecer sentido. Assim, sem perceber, ele se torna o Necrosapiens, um ser cuja morte já não é biológica, mas existencial, uma morte que se dá pela incapacidade de ser. Ele não mais vive, mal sobrevive. E nessa sobrevida, ele se torna a própria exemplificação de sua própria tragédia: um ser que, em sua busca por algo que nunca encontrará, já perdeu tudo o que poderia ter sido. O mundo ao seu redor continua a girar, e ele segue, passo a passo, sem entender que cada um deles o afasta, irremediavelmente, de si mesmo.

11/14/202416 min read

A Cidade e o Cenário da Desumanização

A cidade, um labirinto de pedra e aço, pulsava com uma energia ininterrupta, sufocante. Ali, as almas dos homens se perdiam nos corredores tortuosos das vielas e nas sombras dos edifícios, cujas janelas eram olhos cegos, nunca piscando, sempre observando. A paisagem era uma simbiose estranha entre concreto e fumaça, onde o céu só era visível como uma linha tênue, esmagada entre as alturas impossíveis das construções. Aquela era uma cidade onde o dia e a noite se confundiam, onde o ruído das máquinas abafava qualquer suspiro de vida e onde o sol, mesmo ao meio-dia, parecia pálido, filtrado por uma névoa perpétua de fuligem.

A escuridão pairava densa e opressora, engolindo as ruas e as almas que se arrastavam por entre os becos estreitos da cidade. A bruma da manhã, cinza e úmida, cobria as faces dos trabalhadores que, com passos calculados e olhos vazios, deslizavam como sombras em direção ao destino conhecido: a produção do capital, que dominava o horizonte com seus estratagemas estéticos e sombrios. Não havia tempo para a contemplação, para o espanto ou para qualquer coisa que não fosse a obrigação que nos cabe desde o nascimento.

A cidade, sem nome e sem identidade, representava o epicentro de uma sociedade moldada pelo capital. Os edifícios erguiam-se como guardiões impassíveis, enquanto a massa humana marchava mecanicamente. A passagem do tempo era irrelevante; a vida se transformava em uma contínua repetição de tarefas. O movimento era compulsório, pois a pausa significava o fim, uma condenação à invisibilidade. A cidade era, portanto, uma entidade viva, mas fria, alimentada pela constante movimentação e trabalho ininterrupto.

Os habitantes, figuras esguias e encurvadas, moviam-se em um fluxo constante, sem propósito evidente além de obedecer a um ritmo ditado por relógios sem rostos. Cada rua era um caminho traçado, um destino selado que não admitia desvios. O conceito de liberdade se dissolvera em uma névoa de burocracia e rotina, e qualquer ideia de escolha era tão ilusória quanto o reflexo tremeluzente em uma poça de água suja. As pessoas, agora espectros de si mesmas, andavam com os rostos fixos em expressões de indiferença, seus olhos refletindo a ausência de esperança.

O espaço público, outrora concebido para encontros e trocas, tornara-se uma vasta extensão de caminhos funcionais, desenhados para o deslocamento mais eficiente, não para a convivência. As praças, que poderiam ser refúgios, eram nada mais que espaços vazios, cercados de cartazes de anúncios e mensagens que gritavam imperativos: “Compre!”, “Produza!”, “Obedeça!” "Vote!". Cada letreiro, cada anúncio luminoso, era uma ordem mascarada de incentivo, repetindo-se até que a própria mente começasse a ecoar aquelas palavras, incapaz de lembrar a origem do próprio pensamento.

Os poucos que paravam, hesitantes, logo eram empurrados pela massa. Pausar significava ser engolido, ser marcado pela desaprovação silenciosa daqueles que continuavam a marchar, movidos por uma força invisível. O medo do julgamento — uma culpa sem acusação — pairava como um sussurro coletivo, sutil e penetrante. Não havia lugar para a contemplação, para o erro ou para a humanidade. A cidade, como um organismo voraz, não permitia desvio, alimentava-se da constância, da repetição. Não havia amanhã, apenas a continuidade do agora, um agora infinito e sem variação.

Na periferia desse organismo urbano, a natureza sucumbia. Árvores esqueléticas, como sentinelas desoladas, permaneciam ao longo das estradas, marcando o caminho dos que se deslocavam com pressa. O verde que ainda existia era domesticado, enclausurado em vasos de concreto, simbolizando uma rendição à ordem intransigente da cidade. Mesmo o vento parecia ter um peso opressor, carregando o cheiro de metal e combustão que se prendia às roupas e à pele. A própria respiração era um ato de resistência, uma lembrança dolorosa da fragilidade humana em meio à onipotência da máquina.

Os rostos nos transportes coletivos, amontoados em vagões que balançavam como serpentes metálicas, eram máscaras. Uns cochilavam, outros olhavam fixamente para o nada, seus pensamentos devorados pelo ruído constante do atrito de rodas sobre trilhos. Os mais afortunados, talvez, tinham fones de ouvido que sibilavam uma melodia anódina, enquanto suas feições se mantinham rígidas, imunes ao toque da emoção. O tempo se diluía em trajetos, em esperas, em um ciclo sem fim. O corpo humano, um fardo que precisava ser transportado, era suportado como uma peça obsoleta de uma engrenagem.

As fábricas, como templos de uma devoção profana, trabalhavam incansavelmente. O som rítmico das máquinas era quase uma canção ritualística, uma liturgia repetida sem voz, mas com propósito. Cada poro da cidade exalava um ar tóxico, e os operários, figuras anônimas, moviam-se com uma precisão que traía a ausência de alma. Nos corredores dessas fábricas, o tempo se tornava uma moeda, e o trabalhador não era mais do que um depositário do esforço medido em horas, enquanto a vida escoava por seus dedos, sem deixar vestígios.

O capitalismo, como entidade sem rosto, habitava essa cidade como um espírito onipresente. Era o ditador mudo, sem precisar de uma figura que o representasse, sem exércitos, pois sua força vinha da aceitação passiva dos que viviam sob seu domínio. A cidade, então, tornava-se o reflexo de uma existência desumanizada, onde os homens não eram mais homens, mas sombras arrastadas por um impulso de sobrevivência que perdera todo traço de dignidade.

Dentro desse cenário, a semente do necrosapiens começava a brotar, e o ciclo da alienação, cada vez mais profundo, fazia com que o espírito humano fosse gradualmente substituído por uma consciência morta, que ainda respirava, mas não vivia.

Nós Homens e a Rotina da Alienação


A cidade, ainda envolta na névoa perene de seu próprio fôlego, pulsava com a frequência das engrenagens que moviam o destino de seus habitantes. Esses homens, que antes podiam ser identificados por seus traços, agora eram apenas figuras indistintas, amontoadas nas ruas, nos metrôs, nos escritórios, como peças de um quebra-cabeça que não mais se preocupavam em se encaixar. A vida deles não era mais uma narrativa, mas uma sequência de eventos repetitivos, que se sucediam com a precisão de uma máquina implacável. A mudança que ocorrerá neles era invisível a olho nu, pois não estava no corpo, mas no espírito.

O ser que se diz humano, com sua capacidade de reflexão, de amor, de dúvida, já não era mais encontrado nos rostos que cruzavam as esquinas. O que restava era uma expressão vazia, uma máscara de indiferença esculpida pela repetição incessante. Os rostos, outrora singulares e plenos de emoção, tornaram-se esfumaçados, desprovidos de vida, como se a própria alma tivesse sido sugada, um pedaço de carne que se movia, mas que já não sentia. O que antes fora uma busca incessante por significado, por propósito, agora se resumia a um movimento cíclico, entorpecido pela urgência do trabalho, da produtividade, da necessidade de atender a um sistema que nunca questionava, mas que consumia de todos aqueles que nele estavam envolvidos.

As mãos, aquelas mesmas que anteriormente tocavam o que era belo e essencial, agora se moviam como instrumentos sem vontade própria. As gesticulações, as tarefas, as ações do cotidiano, tudo se tornara uma repetição automática, um reflexo condicionado, um hábito que, embora necessário, não trazia mais nenhuma satisfação. Aqueles que olhavam ao redor viam, sem ver, o corpo de seus semelhantes ocupando o mesmo espaço, mas sem realmente se conectar. Não havia mais troca, não havia mais comunhão. O olhar, que antes era capaz de trocar algo entre os indivíduos, agora apenas caía sobre a superfície das coisas, absorvendo dados sem realmente entender ou integrar o que via. Eles caminhavam pelas ruas, mas estavam tão distantes uns dos outros quanto as estrelas distantes no céu. Estavam na mesma cidade, mas não compartilhavam o mesmo mundo.

E assim, a alienação se infiltrava de forma silenciosa, corroendo o que restava de ser humano nessas pessoas. O que se dizia em voz alta não era mais um desejo genuíno, mas uma reação programada às circunstâncias. Não havia mais questionamentos sobre o porquê de estar ali ou para que servia aquele movimento; o ser humano agora agia por inércia, impulsionado pela exigência de ser mais eficiente, mais produtivo, mais adaptável às demandas de um sistema que não parecia mais precisar de humanos, mas apenas de recursos, matérias-primas que poderiam ser descartadas tão facilmente quanto uma máquina quebrada.

No espaço dos escritórios, as expressões se tornaram ainda mais insípidas. Os rostos dos empregados eram velados por telas e gráficos, sua identidade oculta sob as responsabilidades impessoais. Cada um deles era uma engrenagem em uma gigantesca máquina, cujas partes estavam irremediavelmente desconectadas de qualquer sentimento. O café da manhã já não era mais uma refeição, mas um ritual de sobrevivência; a pausa para o almoço não era um momento de prazer, mas um intervalo funcional que mal deixava tempo para respirar. Eles engoliam sua comida com a mesma pressa com que digeriam a vida. Estavam perdidos em uma rotina que se repetia até o ponto da exaustão, mas o cansaço não era mais reconhecido como algo a ser curado. Era apenas uma consequência de um estado natural, uma transição contínua de desgaste, como uma máquina que, ao não ser desligada, continua a rodar até que queime. Não havia espaço para descanso, para o alívio das tensões. O descanso estava programado, mas sempre condicionado à eficiência.

Nas fábricas, onde as massas se encontravam em maior número, o cenário era mais sombrio ainda. As mãos dos trabalhadores moviam-se sem pensar, sem emoção. O som das máquinas era a única música que preenchia o ambiente. A luz artificial iluminava os rostos cansados, mas os olhos desses trabalhadores estavam apagados, vazios. Eles operavam sem discernir o que faziam, como se estivessem fora de si mesmos, executando tarefas que não faziam sentido. O movimento de suas mãos era tão ensaiado quanto o gesto de um ator que há muito perdeu a capacidade de sentir o que está representando. Eles se tornaram aquilo que eram forçados a fazer, e isso, por sua vez, os definia. Não eram mais seres humanos, mas unidades de produção, cada um delas com sua eficiência medida e sua capacidade de realizar tarefas calculada e monitorada. O desgaste físico e emocional era invisível para aqueles que os observavam, pois o cansaço estava disfarçado por um mecanismo de obediência silenciosa.

O espaço doméstico, por sua vez, se tornava um reflexo distorcido do mundo corporativo. Os lares estavam sendo invadidos pela mesma lógica que regia o trabalho. A produtividade se infiltrava nas relações mais íntimas, os filhos eram educados para serem empreendedores, os casais programavam suas conversas para serem o mais eficientes possível, sem tempo para romance, para a busca de significado nas pequenas coisas. A casa se tornava uma extensão da fábrica, e a liberdade de ser humano, de se expressar e de se descobrir, se evaporava como fumaça diante do sopro impiedoso do capitalismo.

Dessa maneira, o ser humano, ao longo do tempo, se transformava, aos poucos, em um espectro, um reflexo de sua própria existência. Ele perdia a capacidade de sonhar, de questionar, de ter dúvidas existenciais. Tornava-se uma máquina, cada vez mais automatizada, cada vez mais distante do que o tornava vivo. Já não pensava, apenas reagia. E isso, mais do que um sintoma de exaustão, era um reflexo do sistema que o havia moldado, que o tinha esvaziado de sua essência e o reduzido à simples funcionalidade. Assim, o que restava era um corpo que se movia, mas que já não sabia mais o que era estar realmente vivo.

A Aceitação e o Declínio do Questionamento

O sistema econômico, regido por números e estatísticas, celebrava essa transformação como progresso. Os líderes empresariais viam apenas o aumento das cifras e chamavam isso de sucesso, cegos à decadência da vida humana. A revolução, que poderia ter sido um grito por mudança, tornara-se apenas uma memória, uma ideia sem substância. O necrosapiens não questionava nem resistia; sua aceitação era uma consequência da morte da alma.

O necrosapiens, ao alcançar o estágio final de sua transformação, encontra-se diante de um paradoxo inquietante. Embora o capitalismo tenha sido o sistema responsável por sua degeneração, ele não é apenas uma vítima passiva deste processo, mas também um cúmplice de sua própria morte existencial. A maior ironia do necrosapiens é justamente sua aceitação do processo de autodestruição, sem qualquer sinal de resistência ou vontade de mudança. Ele já não se vê como uma entidade em busca de transcendência, mas como uma engrenagem necessária para o funcionamento de um sistema que consome, mas nunca se satisfaz.

O estágio final dessa transfiguração é a negação do próprio ser. O necrosapiens, ao ser imerso em um mar de atividades cotidianas e obrigações incessantes, perde sua capacidade de desejar, de buscar sentido. Sua vida é preenchida por uma série de tarefas que o despojam de qualquer desejo mais profundo, como uma máquina que realiza funções sem nunca questionar sua existência. As horas de trabalho são alongadas, os dias são comprimidos em uma sequência de atividades que parecem não ter fim, e o indivíduo já não sente a diferença entre estar vivo ou simplesmente existir. A vida do necrosapiens é uma sobrecarga de obrigações, e o prazer – se ainda houver algum vestígio dele – é tratado como uma exceção a ser evitada, pois implica em tempo perdido, tempo não produtivo.

Esse esvaziamento da subjetividade leva à formação de uma identidade que, na verdade, é inexistente. O necrosapiens já não sabe o que significa ser ele mesmo. Sua identidade, se podemos chamá-la assim, é feita das peças soltas do consumo, da aprovação social, do desempenho no trabalho, mas sem qualquer elo entre essas peças. Ele é uma soma de papéis, funções e expectativas, e não uma unidade coesa de ser. A imagem de si mesmo que o necrosapiens tem é a de uma mercadoria que precisa ser constantemente reformulada, afinada e moldada, mas nunca questionada. Ele não sabe mais quem é, apenas o que faz, e mais do que isso, o que deve fazer para manter-se funcional dentro do sistema. O desejo por um "propósito", que antes poderia ter sido algo mais livre e pessoal, transforma-se em uma busca por eficácia, um desejo de ser útil. A necessidade de autoafirmação, antes uma expressão de identidade genuína, agora se traduz em um desejo de atender à demanda externa, ao mercado, ao desejo do sistema.

Essa desconexão com o ser, porém, não se dá de maneira consciente. O necrosapiens vive sua existência com uma passividade tão arraigada que ele já não percebe a gravidade de sua condição. Ele está imerso em uma normalidade que não questiona, não duvida, não sente, mas apenas executa. A sensação de "não estar vivo" se confunde com a sensação de estar "apenas vivo", e o necrosapiens, nesse estado, se vê como parte do fluxo do capitalismo, sem perceber que ele próprio é um dos maiores alvos dessa máquina insaciável. A vida não mais tem um valor intrínseco, mas apenas um valor funcional. O ser humano se tornou apenas uma extensão de um processo, um processo que consome tudo em seu caminho: pessoas, natureza, cultura, identidade.

Dentro desse sistema, o necrosapiens é mantido por uma rede de relações superficiais e efêmeras, que se limitam a interações que servem apenas para garantir a continuidade do fluxo. As relações pessoais, familiares e até amorosas, que deveriam ser espaços de profundidade e autenticidade, tornam-se apenas mais um produto a ser gerido de acordo com as necessidades do sistema. O tempo dedicado ao outro é, em muitos casos, desvalorizado, visto como um desperdício quando comparado à "utilidade" das relações profissionais ou de consumo. A comunicação entre os indivíduos é muitas vezes reducionista, superficial, e dominada por uma lógica de troca instantânea, sem espaço para uma verdadeira conexão. As conversas são racionadas, quase como mercadorias, e o próprio conceito de "tempo" se torna um item que deve ser gerido com o máximo de eficácia possível. O necrosapiens não se permite mais viver no tempo do outro, mas apenas no seu próprio tempo fragmentado e estéril.

Ao longo desse processo, o necrosapiens também perde a capacidade de amar, de se entregar a algo que não seja funcional ou instrumental. O amor, esse impulso que antes representava a conexão mais profunda e radical com outro ser, se torna um ato de consumismo afetivo. A ideia de relações profundas, que envolvem o sacrifício, a entrega e a troca de energias, cede lugar a um amor pragmático, que se mede, se contabiliza, e se adéqua às normas do sistema. O amor não é mais um campo de experimentação e de liberdade, mas um produto a ser gerido, algo que deve ser rentável, que deve produzir resultados mensuráveis. A relação entre os indivíduos, seja na esfera familiar, seja no campo afetivo, se torna cada vez mais calcada na conveniência e na manutenção de uma imagem idealizada, e não mais no prazer genuíno da convivência e da troca.

Mas o aspecto mais desesperador dessa transformação é que, ao se tornar um necrosapiens, o indivíduo não apenas perde a conexão com o que há de humano em si, mas também com o mundo que o cerca. A natureza, a sociedade, as outras pessoas, tudo se torna uma mercadoria a ser explorada, uma ferramenta que deve ser utilizada para garantir a continuidade do sistema. O necrosapiens não vê mais o outro como um ser distinto, mas como um reflexo de suas próprias necessidades, um objeto que pode ser manipulado e usado. O mundo natural, que antes era o cenário da vida humana, se transforma em um campo de exploração, onde os recursos são retirados sem preocupação com as consequências, porque o necrosapiens já não sabe o que é cuidar, preservar ou nutrir. Ele não vê mais a natureza como algo que pode ser amado, mas como algo que precisa ser dominado.

Ao se tornar o último estágio do humano, o necrosapiens não é mais uma criatura com a capacidade de mudança, de dúvida, de criação. Ele é a culminação de um processo que esvaziou os seres humanos de seu espírito, transformando-os em sombras de sua própria essência, fragmentos de um passado que já não faz mais sentido. O necrosapiens não é uma entidade que tem consciência de sua própria alienação; ele vive sua vida como um espectro, mais vivo do que morto, mas com uma alma que já não sabe mais o que significa ser plenamente humano.

O Necrosapiens e a Nova Ordem


O necrosapiens era a engrenagem perfeita: eficiente, incansável, sem emoção. Tornava-se parte de um ciclo vicioso, em que a vida perdia valor e a funcionalidade era tudo. A sociedade aceitava essa existência sem lamento, pois já não se sabia o que era vida de verdade. O som das máquinas e dos sinos das fábricas era o único canto fúnebre para essa nova forma de existência. E a cidade, satisfeita com a submissão, continuava a devorar seus filhos, sem que houvesse espaço para lágrimas ou despedidas.

O necrosapiens, em sua total desconexão com o mundo que o cerca, vive imerso em uma existência que não é mais sua, mas uma repetição incessante das expectativas que o sistema impõe. As relações, que antes poderiam ser entendidas como uma forma de troca humana genuína, agora são reduzidas a um mecanismo de eficiência. O que se espera do ser humano, e o que ele espera de si mesmo, não é mais o que ele sente ou o que ele deseja, mas o que ele deve fazer para garantir a continuidade de sua utilidade no mercado. Esse ser, que se perdeu na rotina e na imensidão do mundo capitalista, é incapaz de se perceber como sujeito de sua própria história, pois sua identidade está irremediavelmente dissolvida no coletivo impessoal do sistema.

Esse vazio existencial, que se estende por toda a sua vida, é, paradoxalmente, preenchido pela ideia de que ele deve ser sempre mais: mais produtivo, mais eficaz, mais adaptado. A ideia de um "ser melhor", que antes poderia ter sido associada a um desenvolvimento pessoal autêntico, agora se traduz em uma obrigação imposta, uma pressão constante para se adequar às normas, para se ajustar às demandas de um sistema que consome, mas nunca sacia. A vida do necrosapiens, em seu estado de desumanização, é uma vida sem liberdade, sem vontade própria, sem autenticidade. Ele é um reflexo das expectativas do mercado, e não mais de sua própria vontade. As decisões que antes poderiam ser tomadas com base em desejos próprios, agora são ditadas por fatores externos: a necessidade de manter um emprego, de consumir para estar em dia com as tendências, de ajustar sua imagem àquilo que o sistema considera adequado.

Nesse estágio, o necrosapiens perde a capacidade de experimentar a vida de maneira livre. Ele está preso em uma armadilha de obrigações que não têm fim, uma teia de consumo e produção que o mantém em um ciclo eterno de exaustão. A felicidade, se é que ainda há espaço para ela, se transforma em uma mercadoria a ser comprada e consumida, não mais algo que surge espontaneamente de suas relações ou da experiência vivida. O prazer, o descanso, a diversão – todos esses elementos se tornam transações a serem feitas dentro de um mercado de sensações, em que nada é genuíno, nada é verdadeiro. O necrosapiens já não sabe o que é sentir verdadeiramente, pois todos os seus sentimentos foram moldados, ajustados e adaptados para se encaixar no que é socialmente aceitável ou financeiramente vantajoso. A busca por prazer se torna uma busca por consumo, e o prazer se torna um produto como qualquer outro, vazio de significado, mas ainda assim necessário para manter o sistema funcionando.

Esse vazio existencial, no entanto, não é vivido como uma ausência, mas como uma presença insidiosa, uma espécie de mal-estar crônico que acompanha o necrosapiens em todos os momentos. Ele sente a falta, mas não sabe do quê. Ele está sempre em busca de algo, mas não sabe o que procura. Cada momento é uma transação, cada interação é uma troca sem substância, cada dia se passa sem que haja um propósito claro. A vida do necrosapiens é uma sucessão de ações automáticas, de horas que se esticam em uma monotonia que o consome sem que ele sequer perceba. O tempo se torna um fardo, um elemento a ser administrado, e não mais uma experiência a ser vivida. Cada segundo é perdido em uma busca incessante, mas fútil, pela manutenção de uma ordem que só existe para mantê-lo ocupado, para mantê-lo funcionando.

No entanto, o necrosapiens não é consciente de sua própria morte, pois ele não tem mais capacidade de perceber a si mesmo como ser. Ele já não sabe o que é estar vivo, pois sua existência foi tomada pela necessidade de sempre produzir, de sempre consumir, de sempre avançar em um ciclo interminável. O conceito de "vida" perdeu seu valor original. Para ele, viver é apenas existir, sem mais. Ele já não tem mais a capacidade de imaginar, de sonhar, de se perguntar sobre o que poderia ser ou o que deveria ser. Ele é uma presença sem substância, uma sombra que caminha para mais uma jornada que nunca o levará a lugar algum.

No final, o necrosapiens se torna a própria personificação do capitalismo: um ser sem alma, sem desejo, sem capacidade de transcendência. Ele é o produto acabado de um sistema que, ao tentar moldar e controlar, acaba por destruir tudo o que havia de humano. A morte que ele experimenta não é biológica, mas espiritual, uma morte lenta e silenciosa que o consome de dentro para fora. Ele já não pode ser mais do que é, pois o que ele é foi retirado dele pelo próprio sistema que o criou. O necrosapiens não sabe, mas ele está morto antes mesmo de perceber. Ele apenas continua a viver, sem vida, até o fim de sua jornada.