O voo da águia - A percepção do vazio
O vazio — esse termo tão poeticamente maltratado — não é a representação do nada, ou da ausência. Ele é o pano de fundo silencioso, que possibilita a criação, um espaço onde o nada pode, finalmente, se projetar para tornar-se todo. Quando tentamos preencher esse vazio na busca de alívio e o alívio não vem, não entendemos que estamos sufocando qualquer possibilidade do novo. O vazio é um convite gentil, uma porta aberta que só é percebida por aqueles dispostos a deixar que o desconhecido entre. Cada vazio preenchido é uma prisão disfarçada, uma recusa ao fluxo incessante da vida, que só pode ser tecida com o fio da incerteza e da espera. Assim, é no vazio que se encontra a verdadeira liberdade, e na abertura do ser para ele que se desvela o poder de criar a própria existência.. Não temos um vazio dentro de nós, somos o próprio vazio.
6/9/20256 min read

Contempla-se a existência, essa marcha incessante marcada pelo conflito, pelo desespero e por uma solidão pungente. A vida, longe de ser um fluxo sereno e lúcido, revela-se um campo de batalha perpétuo, não apenas no exterior, onde grassam guerras, nacionalismos absurdos e divisões mesquinhas, mas, sobretudo, no interior do ser, onde a contradição dilacera a própria psique. O indivíduo, imerso numa superficialidade sem sentido, cujas atividades se resumem a rotinas vazias e problemas aparentemente insolúveis, depara-se com um vazio e uma insuficiência crônica.
Nessa vacuidade auto-infligida, o ser, profundamente insatisfeito com "o que é", lança-se desesperadamente em busca de muletas e escapismos fúteis. Busca prazer e excitação em entretenimentos vulgares e sem substância, quer seja na música, na arte, no cinema, na televisão, nos esportes, ou na incessante tagarelice superficial. Persegue o sucesso, a ambição, o poder e a posição social com uma energia desproporcional, na crença tola de que tais conquistas preencherão o abismo que carrega. A mente, sobrecarregada pelo peso do condicionamento – produto de milênios de tradição, propaganda, medo, cultura, fatores econômicos, climáticos, educacionais, e conformidade religiosa e social – inventa ideais, conceitos, e teorias sem valor real, numa vã tentativa de encontrar significado, segurança ou uma "liberação futura". Torna-se um ser de segunda mão, repetindo o que outros disseram, incapaz de descobrir algo original ou verdadeiro, vivendo em hábitos estúpidos, entorpecedores e violentos, impulsionado pelo medo da insegurança e pela aversão a ser "nada", o que o leva a agarrar-se ao conhecido – essa mesma existência de dor e desespero.
A raiz dessa miséria dilacerante reside na fragmentação que o ser humano insiste em perpetuar. A vida é dividida em compartimentos estéreis: negócios, social, familiar, religioso, esportivo, etc. E o próprio ser cinde-se em oposições mesquinhas: "nós" e "eles", "você" e "eu", amor e ódio, viver e morrer, o bom e o mau, "o que deveria ser" e "o que é". É essa divisão incessante, essa dualidade inerente ao pensamento, que gera o conflito e esgota a energia vital em lutas internas e externas. A própria busca por "tornar-se" algo diferente do que se é, a comparação constante com outros, a imposição do "deveria ser" sobre o fato nu do "é", tudo isso é violência. A violência contra si mesmo, a violência na repressão e no controle, a violência na conformidade a padrões externos ou internos. A moralidade social, tão reverenciada, é em si imoral – fundamentada na cobiça, inveja, ambição, competição, culto ao êxito, hierarquias – e a tentativa de se conformar a ela é uma forma de violência e hipocrisia. A rebelião contra essa moralidade social, sem a descoberta da verdadeira moralidade, é apenas outra forma de violência.

Diante deste pântano de autoengano, conflito e miséria, surge a exigência de uma mudança radical. Não uma transformação gradual, essa farsa que o tempo e a prática tornam mecânica e fútil. O tempo, o "amanhã psicológico", é o inimigo da liberdade interna, a desculpa da preguiça. que evita lidar com o "é" agora. Não há "como", não há método, não há guru ou sistema que possa livrar o ser de seu próprio aprisionamento. A esperança em ajuda externa, seja de um professor, de um livro, de uma terapia, ou de um deus, é apenas mais uma ilusão. O "conhecimento" acumulado, a experiência, a memória – que constituem o cérebro e o pensamento – são o passado, sempre velhos, incapazes de compreender o novo.
O que se requer é uma observação implacável, um olhar sem véus, sem julgamento, comparação, análise ou desejo de fuga. Apenas ver o fato – a violência, o medo, o ciúme, a amargura, a fragmentação, a contradição – como eles são em realidade, sem fugir, reprimir, ou justificar. A própria percepção clara, intensa, sem o intervalo do tempo, é a ação que dissolve o problema. É ver que o "observador" é o "observado", o "pensador" é o "pensamento", acabando com a ilusória batalha interna.
Essa observação exige uma energia colossal, não a energia gasta em conflitos, mas a que surge da ausência de contradição. É a energia da atenção total – estar completamente acordado, atento a cada movimento interno e externo. Uma mente que ousa morrer psicologicamente para o conhecido, para todo o passado, para todos os apegos, medos e o "eu" – não por esforço, pois isso seria mais violência – mas pela inteligência aguçada que vê a futilidade da luta. Só uma mente e um cérebro completamente quietos – não pela repetição mecânica de palavras ou métodos estúpidos, mas pela compreensão total de sua própria desordem – podem perceber sem distorção. É uma viagem ao interior do que se conhece, sem mapa ou destino pré-determinado, expondo a própria miséria em sua totalidade.
Nessa morte psicológica, onde o "eu" esvaziado se revela um feixe de palavras e memórias vazias, onde a fragmentação cessa, surge algo totalmente diferente. Não o prazer vulgar, mas uma ordem absoluta que é virtude genuína, um amor sem ciúme, posse ou divisão, uma paixão sem motivo ou objetivo, e um êxtase que não é produto do pensamento. É um viver, um amar e um morrer que são um movimento único e indivisível. Uma vida inteira, liberta da tortura auto-infligida e do vazio, uma vida que é a meditação em si mesma, a ação total e imediata no instante do ver. Nada menos que isso abordará o abismo do vazio interno. O resto é barulho, miséria auto-infringida, perpetuada pela própria mente embotada e apegada à sua própria escuridão.

A miséria que dilacera a existência humana não é um acaso fortuito, mas a consequência inevitável da fragmentação que o próprio ser cultiva. O cérebro, este depósito do passado, moldado por milhares de anos de evolução e condicionamento, opera incessantemente através do pensamento, que por sua vez divide a totalidade da vida em compartimentos estanques e opostos: o trabalho versus o lar, o social versus o individual, o consciente e as profundezas ocultas do assim chamado inconsciente. Acima de tudo, impõe a cizânia fundamental entre o "eu" e o "não-eu", "nós" e "eles", e o eterno conflito entre "o que é" – a realidade nua e crua – e a projeção ilusória do "o que deveria ser".
É esta dualidade inerente ao pensamento, esta batalha contínua entre os fragmentos da própria psique, que dissipa a energia vital e gera o ciclo interminável de conflito, medo, ansiedade, desespero, solidão e a busca neurótica por segurança psicológica em ideias, crenças, gurus, ou posses materiais, que se revela totalmente vã e apenas aprofunda a insegurança real.
As fúteis tentativas de escapar deste pântano de sofrimento auto-infligido – seja através do prazer vulgar, do entretenimento (religioso ou secular), da adesão a ideais estéreis, da submissão a métodos ou sistemas, ou da acumulação de conhecimento de segunda mão – são, elas mesmas, produtos dessa mente fragmentada. São apenas muletas que impedem o confronto direto com "o que é" e, portanto, carecem de qualquer capacidade real para curar a raiz da doença humana.
Não há salvação gradual. O tempo psicológico, o "amanhã" do "eu serei" ou "eu alcançarei", é a própria matéria-prima da ilusão. A "transformação" prometida pela prática gradual é apenas uma continuidade modificada, um refinamento superficial do mesmo conflito, perpetuando a luta e a miséria. Não há método ou esforço capaz de transcender o pensamento que os gerou. A esperança em ajuda externa – seja divina, humana ou conceitual – é apenas mais uma forma de autoengano e dependência.
A única possibilidade de romper com este ciclo de sofrimento está na percepção radical, uma observação total, imediata e intensa de "o que é", sem a intervenção do pensamento ou do tempo psicológico. Requer uma atenção implacável, uma vigilância sem o véu do julgamento, comparação, análise. ou do desejo de fuga. É uma arte de ver onde se percebe, no instante mesmo, que o "observador" – a entidade ilusória do "eu" construída pelo pensamento – não é, de fato, separado do observado (o medo, o ciúme, a violência, a fragmentação). O "pensador é o pensamento".
Nessa percepção intensa e direta, que ocorre fora da prisão do tempo psicológico, a ação surge instantaneamente, sem deliberação ou decisão baseada no passado. O ver é a ação que dissolve o conflito e a divisão. É uma morte psicológica para o conhecido – para toda a bagagem do passado, para todos os apegos, medos e para a própria ilusão do "eu" como uma entidade separada e permanente.
Apenas uma mente completamente quieta – não por imposição, controle ou prática mecânica, mas pela inteligência aguçada que compreende a totalidade de sua própria desordem e cessa a luta – pode perceber sem distorção. É essa quietude, essa ordem absoluta que não é conformidade, que constitui a virtude genuína e a base para a descoberta. É nela que reside a liberdade e a paixão – não a busca por prazer ou excitação, mas o êxtase que transcende o pensamento.
Trata-se, em última instância, de encarar o abismo do vazio interno com uma atenção feroz, despojada e sem destino, viajando ao interior do que se conhece (seus prazeres, dores, medos, ilusões), pois é unicamente nesse ato de ver sem reservas, onde viver, amar e morrer são um único movimento indivisível – a vida total, livre da tortura auto-infligida – que o ser se liberta da sua própria prisão psicológica e pode, talvez, perceber aquilo que é indescritível, incomensurável, intemporal. O resto é apenas a continuação do barulho, do conflito e da miséria, perpetuados pela mente que se agarra à sua própria escuridão.
