Quando a Retórica Verde se Transforma em Cinzas: A Verdadeira Face do Ecofascismo e das Queimadas de 2024
Entre discursos ecológicos vazios e políticas que destroem o que dizem proteger, estamos vendo um futuro onde o ecofascismo molda o planeta à sua própria conveniência. A devastação do nosso lar, vulgo planeta, está intrinsecamente ligada à hipocrisia política e ao colapso moral que ameaça nossa própria existência. Ao se concentrar em demandas fragmentadas ou em questões de identidade isoladas, muitos movimentos sociais acabam por perder a força necessária para enfrentar a verdadeira matriz da opressão moderna: a exploração ambiental que sustenta o capitalismo.
10/14/202410 min read

Pauta ecológica: Omissão fatal
As recentes queimadas que assolaram o Brasil em 2024 são o retrato nu e cru da falência ética e moral de grande parte dos políticos e movimentos sociais brasileiros, um ecocídio, ou biocídio deliberado, o assassinato da vida motivado pela ganância e sustentado por uma aliança perversa com o agronegócio e grandes corporações. O que deveria ser uma tragédia humanitária e ecológica tratada com urgência, é usado como capital político, onde as chamas que consomem o país são, ao mesmo tempo, alimentadas e negligenciadas por aqueles que ocupam os altos escalões do poder bem como pelos movimentos sociais de ponta e das margens.
O que vemos agora em 2024 é o colapso final de uma lógica que começou há décadas, mas que se intensificou brutalmente nos últimos anos. Sob o pretexto de progresso e desenvolvimento econômico, as políticas ambientais foram sendo gradualmente desmontadas, e as agências de fiscalização, enfraquecidas. O que é vendido como “crescimento” é, na verdade, a morte em massa da biodiversidade, e um ataque violento aos modos de vida dos povos originários, que resistem heroicamente como podem, mas são dizimados pelas chamas patrocinadas pelo Estado. Cabe aqui uma pequena observação, que é pequena simplesmente por nossa desconsideração. Qual genocídio foi pior do que o dos povos originários? Qual povo foi apagado da história de maneira brutal desde que o homem lançou-se ao mar, ou guerreava por terra? O maior genocídio da história se quer é considerado seriamente para ser colocado como ponta de lança dos movimentos sociais, esses mesmos que dizem lutar bravamente pelas pautas corretas, perdem-se no próprio discurso.
As queimadas de 2024 não são um acidente ou uma tragédia isolada; são uma consequência direta de uma política deliberada de desmonte ambiental, onde o interesse de poucos suplanta a necessidade de preservar a vida. Sob o disfarce de “facilitar o crescimento” e “desburocratizar”, esses políticos promoveram um cenário de impunidade, onde grileiros, fazendeiros e mineradores sentem-se encorajados a destruir, pois sabem que não haverá punição real. Vide, barragens se rompendo, lençóis freáticos sendo contaminados, e até hoje como anda Brumadinho?
E quem paga por isso? São os povos originários, que há séculos, preservam o que restou das matas. São aqueles que dependem das florestas para viver, e que agora, veem suas casas e suas culturas sendo consumidas pelo fogo tornando-se assim um símbolo de real resistência, os verdadeiros guardiões da terra. E nós, afinal somos o início e o fim dessa cadeia de consumo, ou você acha que tudo que você come poder ser sintético? ou é possível transmutar metais não nobres em ouro e lítio para que tenhamos nossos celulares, computadores e toda parafernália moderna? Enquanto políticos brasileiros se mostram desinteressados de agir, ou pior, se alinham aos interesses daqueles que lucram com a devastação, os povos da floresta continuam a lutar sozinhos, com pouco ou nenhum apoio. A crítica vazia de que o "índio" hoje "se vendeu" para a cultura de consumo capitalista é tão rasa quanto o reflexo de um espelho que ao mínimo impacto se fragmenta de milhões de pedaços. Quantas e quais culturas "renderam-se" a povos genocidas que conquistavam através da matança simplesmente para não morrer e preservar o que ficar da própria cultura e, hoje são referência de resistência para teóricos acadêmicos produzirem seus "pappers" em sua zona de conforto?
A apropriação do discurso ecológico por aqueles que não têm nenhum compromisso real com a causa é inadmissível. Políticos que nunca pisaram na terra que dizem proteger, que nunca se deram ao trabalho de ouvir as vozes daqueles que vivem da floresta, das águas e da terra, passam a usá-los como um recurso retórico para angariar votos. Eles aparecem em eventos internacionais, assinam tratados e fazem promessas vazias em palanques eleitorais, enquanto seus governos continuam a permitir o avanço de corporações que destroem habitats, poluem rios e devastam áreas indígenas. Tudo para garantir seus lugares em cargos públicos.
Os povos originários carregam consigo uma sabedoria ancestral que compreende o equilíbrio entre a natureza e a existência humana. Sua ecologia não é uma teoria acadêmica ou uma bandeira política, mas sim uma prática viva de respeito e coesão com o ambiente que habitam. Eles não veem a terra como recurso a ser explorado ou como uma abstração para discursos de conveniência. Para eles, a terra é mãe, é sagrada, e não se presta a jogos políticos de conveniência.
Enquanto isso a bancada ruralista e evangélica segue intacta.

Progresso e Desenvolvimento: O Chamado ao Colapso
A questão de riqueza, progresso, moral e valores no capitalismo, comparada à perspectiva dos povos originários, revela um profundo abismo de significados, que expõe os fundamentos filosóficos e éticos de ambos os sistemas. Enquanto o capitalismo tradicionalmente concebe a riqueza em termos materiais — acumulando bens, recursos e poder —, os povos originários veem a riqueza como uma interconexão com a natureza, a comunidade e a espiritualidade.
Riqueza no capitalismo é quantificada por posse e acúmulo: terra, dinheiro, produtos e capital humano. Este conceito está ligado à ideia de que o sucesso e o valor pessoal estão intimamente relacionados à quantidade de recursos que um indivíduo ou uma nação pode acumular. Filosoficamente, essa visão tem raízes no pensamento utilitarista e liberal, onde o progresso é medido pela expansão econômica e pela capacidade de explorar e transformar os recursos naturais. O sistema capitalista encoraja a competição, promovendo a ideia de que o indivíduo deve trabalhar para obter uma posição de poder ou estabilidade financeira.
Progresso, no capitalismo, é o avanço tecnológico, a industrialização e o crescimento das cidades e do mercado. É uma concepção linear e quantitativa, onde a história avança de uma condição de atraso para uma de modernidade, e aqueles que ficam para trás são vistos como "menos desenvolvidos". Da filosofia, essa visão é influenciada pelo positivismo e pelas ideias de progresso linear e inevitável, como formuladas no Iluminismo. A moralidade, então, passa a ser moldada pelo que promove esse progresso: o trabalho, o consumo, o empreendedorismo.
O capitalismo coloca o consumo como centro de sua moral, com a ideia de que o bem-estar se obtém pela aquisição de bens. Entretanto, para os povos originários, o bem-estar está em pertencer à comunidade e à natureza, não em possuir coisas. No capitalismo, a moralidade frequentemente se justifica pela produtividade; quem trabalha mais ou acumula mais tem mais valor. Nos sistemas indígenas, quem cuida mais da terra e quem partilha mais é que é visto com respeito.
Portanto, a grande questão filosófica que emerge ao contrastarmos esses dois sistemas é: o que realmente define a riqueza, o progresso e o valor humano? Para os povos originários, essas noções estão intrinsecamente ligadas ao respeito pelo ciclo natural da vida, à coexistência com o mundo e à responsabilidade coletiva. No capitalismo, essas ideias são substituídas por uma visão competitiva e utilitarista da existência, onde o progresso é quantificado em números e o valor humano é medido por aquilo que se pode acumular.
O conceito de ecofascismo mencionado anteriormente revela como essa apropriação de valores ecológicos pelo capitalismo é, na verdade, uma contradição. Os valores capitalistas de exploração não podem coexistir genuinamente com uma ética de preservação ambiental, pois a lógica do acúmulo inevitavelmente leva à destruição. Para os povos originários, essa destruição representa a perda do que é mais sagrado: o equilíbrio da vida.
Para muitos desses povos, a ideia de propriedade privada, central ao capitalismo, é um conceito estranho e antitético ao seu modo de vida. As terras são sagradas, e não meros recursos a serem vendidos ou explorados. A moralidade está enraizada na reciprocidade e no respeito à natureza, visto que a natureza é uma extensão de suas próprias existências. A palavra “progresso”, tal como o capitalismo a define, seria vista como destruição, pois o verdadeiro progresso seria manter o equilíbrio e interferir no meio de maneira responsável, não transformá-lo em mercadoria.
Filosoficamente, essa diferença nos valores pode ser traçada até as tradições ocidentais e não ocidentais. Enquanto o capitalismo e o liberalismo político ocidentais se baseiam em John Locke e na ideia de que a propriedade privada é um direito natural, os povos originários têm suas concepções baseadas em saberes ancestrais que veem a terra como mãe, algo que não pode ser possuído, mas apenas cuidado. A riqueza, portanto, é coletiva, e o progresso é medido pela capacidade de manter o equilíbrio com os ciclos naturais, não pela extração desenfreada de recursos.
Enquanto isso a bancada ruralista e evangélica segue intacta.

Ecofascismo: O Perigo de Não Tomar a Liderança Verde
E onde estão os agentes que deveriam ser os aliados naturais desses povos? Muitas vezes silenciados ou cooptados, tais "movimentos políticos/partidários" caíram na armadilha de trocar as ruas pelas conferências, o ativismo pela burocracia e o engajamento de base por alianças partidárias. Em vez de manterem seu foco na luta pela terra e pelos povos que dela dependem, muitos se voltaram para uma agenda ambiental higienizada, desconectada das raízes da verdadeira ecologia — a ecologia da vida cotidiana de quem depende da terra, não como recurso, mas como lar.
Os movimentos sociais, que deveriam ser a vanguarda da transformação social, estão lamentavelmente perdidos ao não fazerem da pauta ecológica e dos povos originários e sua bagagem científico-espiritual, sua principal arma de luta. Em um momento em que as crises ambientais se intensificam de forma sem precedentes, e a destruição do meio ambiente afeta diretamente as populações mais vulneráveis, esses movimentos falham miseravelmente em não transformar essa questão em seu ponto de resistência mais forte.
Ao se concentrar em demandas fragmentadas ou em questões de identidade isoladas, muitos movimentos sociais acabam por perder a força necessária para enfrentar a verdadeira matriz da opressão moderna: a exploração ambiental que sustenta o capitalismo. A devastação ecológica, amplificada por políticas negligentes, deveria ser o fio condutor de uma luta mais abrangente, pois a crise ambiental é a crise de todas as lutas — seja pelo território, pela dignidade ou pela sobrevivência de povos inteiros.
No entanto, o foco fragmentado e a ausência de uma visão ecológica profunda para não dizer ridículo, faz com que muitos movimentos sociais não percebam que, sem um planeta habitável, nenhuma justiça social será possível. Movimentos que se limitam a reivindicações setoriais ou lutas isoladas acabam, de maneira trágica, perdendo o potencial revolucionário de confrontar as estruturas que destroem tanto a natureza quanto as pessoas. A questão ecológica deveria ser ponta de lança de qualquer projeto revolucionário que vise à justiça de longo prazo, uma vez que o ambiente em que vivemos é o solo comum de todas as lutas.
Esses movimentos, ao ignorarem a ecologia como uma questão central, não apenas traem seus próprios princípios de justiça e se afastam da própria origem da terra onde pisam, mas também abrem espaço para que a retórica ecológica seja sequestrada por discursos fascistas e elitistas, como o ecofascismo. A falta de uma liderança social forte nessa questão permite que o sistema use a máscara do ambientalismo para justificar políticas de exclusão, controle populacional e exploração dos recursos naturais em benefício de poucos.
A luta pelo meio ambiente não pode ser deixada para o campo das ONGs corporativas ou dos políticos que usam o "verde" como slogan de marketing. Ela precisa ser resgatada e defendida como uma questão de vida ou morte, uma batalha de civilizações que deve colocar em xeque o próprio conceito de progresso e desenvolvimento que nos trouxe até o abismo ambiental em que estamos. Só assim, ao empunhar essa bandeira como sua arma mais forte, os movimentos sociais poderão retomar o caminho da verdadeira revolução social.
Esse confronto de visões levanta a pergunta central: o que devemos priorizar enquanto seres políticos? A acumulação desenfreada que leva à destruição do planeta, ou a preservação do equilíbrio natural, que garante a continuidade da vida para as gerações futuras? Qual pauta sustenta outras pautas? Se nosso planeta entrar em um inverno vulcânico mundial, as pautas ideológicas salvariam? as pautas sindicais salvariam? E por salvar, querido leitor, leia-se, nosso atual entendimento de si e do mundo que nos rodeia baseado no sistema social em que estamos inseridos nos educa de maneira que sustentemos quais valores? logo, somente um profunda reforma íntima e, por consequência, o desencadeamento de uma revolução educacional ambiental, compreendendo ambiente tudo que é ou está do micro ao macro. Qual pauta senão a do planeta em que vivemos e como vivemos permite a sustentação de outras pautas? e se essa coluna vertebral que sustenta a vida estiver comprometida não seria de crítico revermos todo nosso modus operandi desde a citada profunda reforma íntima para podermos ver a linha do horizonte de revolução social? Qual nossa real prioridade enquanto seres "conscientes"? Do que estamos conscientes exatamente? Fato é que pouco temos consciência da própria insignificância, e o homem se quer é ainda senhor da própria vontade.
Em suma, as queimadas de 2024 são a prova concreta de que o ecofascismo brasileiro não é apenas uma teoria; ele é real, ele está nas políticas públicas, nas alianças políticas, na geopolítica como eterno quintal do mundo, nos movimentos sociais cegos ou anestesiados por uma cortina de fumaça que os próprios produzem, e nos discursos mentirosos que tentam justificar o injustificável. Enquanto o país literalmente queima, os políticos ecofascistas continuam a se apropriar do discurso ecológico, utilizando-o para manipular a opinião pública, mas sem qualquer intenção real de preservar o que resta da nossa casa.
A crítica ao conceito de progresso capitalista precisa ser a ponta de lança de qualquer movimento social. Sem questionar o mito do desenvolvimento, a destruição ambiental continuará sendo justificada em nome do lucro. E o mito do desenvolvimento por sua vez perpassa inevitavelmente pelo reajuste da visão cosmogônica de mundo que nos é embutida por todos os sistemas que envolvem o capital. Caso contrário a história, talvez, e só talvez, mostrará que nosso maior erro foi não olhar para o solo no qual caminhamos, e por isso o, planeta, essa estrutura rochosa flutuante no espaço seguirá seu curso, seus dias e noites continuarão, seus ciclos se estabilizarão e nós, desapareceremos da face da terra.
"Buliram muito com o praneta
E o praneta como um cachorro eu vejo
Se ele já não guenta mais as pulgas
Se livra delas num saculejo"
(Raul Seixas - As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor)
Enquanto isso nossa bancada ruralista e evangélica continua intacta.
