Retórica do Vazio: Quando a Dialética É Só um Eco
Em A Condição Humana, Hannah Arendt propõe que a ação é a essência da vida pública e política, onde a palavra desempenha um papel crucial. Arendt descreve três atividades humanas fundamentais: trabalho, obra e ação, sendo esta última a única diretamente relacionada à liberdade e à pluralidade, já que ela ocorre exclusivamente entre os homens, na esfera pública. A palavra, para Arendt, é uma extensão da ação e deveria, idealmente, ser uma manifestação da liberdade humana e da capacidade de iniciar algo novo. Entretanto, ela reconhece que a palavra frequentemente perde sua essência transformadora e se torna um eco vazio. Ao invés de conduzir à ação, o debate pode cristalizar a inércia e a repetição, uma miragem que simula movimento, mas não conduz a mudanças reais.
10/27/20249 min read

No Labirinto dos Argumentos: Um Eterno Desencontro no Debate
Hannah Arendt, em sua análise sobre a ação em A Condição Humana, aponta a futilidade de uma palavra que se desvincula da prática, transformando-se em inércia. O debate se torna então uma dança sem propósito, um ciclo infindável de vozes que pouco revelam além de um desespero silencioso. Ao final, todos — “vencedores” e “perdedores” — saem da arena retórica com o mesmo vazio e confusão. Tal como Kafka descreveu em seus labirintos sem saída, os debates podem nos levar a lugar algum, exceto ao retorno ao ponto de partida, como se o movimento do discurso fosse suficiente por si só.
Por sua própria natureza, o debate alimenta-se da oposição e não da síntese, o que faz com que sua prática não apenas evite a ação, mas também divida ainda mais os que dele participam. Jürgen Habermas, em Teoria do Agir Comunicativo, nos lembra da fragilidade do diálogo quando dominado pela “estratégia” e pela manipulação. Aqui, os debates são armadilhas onde a busca de consenso vira um ato de dissimulação, de manipulação dos interlocutores, afastando a verdade e criando um vazio. Para Habermas, o debate deveria ser um meio para a verdade consensual, mas a instrumentalização da palavra vira estratégia de poder.
Arendt faz uma crítica ao debate que se limita a reproduzir estruturas de poder e status quo, ao invés de transformar a sociedade. Para ela, o debate ideal deve ser uma arena onde novas ideias possam surgir, impulsionadas pela liberdade de pensamento e pela pluralidade das perspectivas. No entanto, a proliferação de discursos superficiais e a inclinação para a retórica ornamental enfraquecem essa função. Quando o debate se torna um fim em si mesmo, ele nos engana, pois gera a ilusão de engajamento sem permitir uma mudança real.
Tal pensamento dialoga com Michel Foucault, ao analisar os mecanismos de controle através do discurso em A Ordem do Discurso, diria que o debate nada mais é do que uma “ordem” imposta, onde as vozes participantes obedecem a regras implícitas que limitam a liberdade de pensamento. Os debates, então, não são destinados a encontrar uma verdade comum, mas a solidificar posições, a reiterar poder. Em sua análise sobre o poder do discurso, Foucault ressalta que debates podem facilmente se transformar em um modo de vigilância e opressão, onde a palavra se torna uma prisão, como Kafka descreveu em sua obra.
Em um mundo onde a ação é constantemente postergada em favor da palavra, onde os sons dos argumentos se confundem com as sombras projetadas nas paredes da caverna, o conceito de "debate" parece um ritual vazio, sem fim. Como um pássaro em uma gaiola de vidro, a verdade bate as asas contra os limites invisíveis dos discursos, apenas para despencar de volta ao ponto de partida. Nesse cenário, Franz Kafka nos recorda que a repetição e a burocracia não nos conduzem à verdade. Em O Processo, por exemplo, ele representa como o sistema, com seus argumentos e promessas de justiça, aprisiona mais do que liberta — e como o debate muitas vezes realiza o mesmo, oferecendo apenas o espetáculo do discurso.
Cada réplica no debate parece uma tentativa desesperada de se libertar dessa estrutura, mas cada palavra dita, longe de liberar, se mostra um peso a mais, como se estivéssemos num teatro kafkiano onde os personagens não atuam em busca de uma saída, mas apenas ensaiam seus papéis. Adorno e Horkheimer, em Dialética do Esclarecimento, examinam essa mesma distorção: a racionalidade instrumental que corrompe o diálogo transforma o debate em mera disputa por controle. Para Adorno, essa racionalidade vira o próprio veneno que contamina a verdade, pois o embate se torna um mecanismo onde a palavra é usada para vencer, não para esclarecer.
Arendt vê a substituição da ação pelo discurso como um tipo de alienação moderna, onde o indivíduo se desconecta da capacidade de iniciar mudanças reais. Esse esvaziamento do potencial revolucionário do discurso leva à apatia, pois a palavra, divorciada da ação, não ressoa como verdadeira ou significativa. Assim, em vez de servir à liberdade e à criatividade, o debate atua como um paliativo social, que apazigua sem modificar, aprisionando a sociedade em uma espiral de discursos inférteis.

A Pluralidade e o Perigo da Homogeneização do Debate
Para Arendt, a pluralidade é o coração da vida política: é através da interação entre diversos pontos de vista que a sociedade enriquece suas perspectivas e cresce. Entretanto, quando o debate se torna homogêneo, dominado por discursos repetitivos e previsíveis, ele perde seu valor essencial. A homogeneização do debate sufoca a pluralidade, reduzindo-o a uma arena de argumentos estereotipados, onde o objetivo é persuadir ao invés de descobrir.
Ela enfatiza que uma verdadeira troca de ideias implica a aceitação da diversidade de opiniões e da imprevisibilidade das interações humanas. Quando o debate se rende à uniformidade, ele impede o florescimento de novas ideias e reprime a individualidade dos participantes. Arendt vê essa tendência como uma ameaça à vitalidade do discurso, transformando-o em um mecanismo de manutenção de poder, em vez de um campo para a descoberta.
Jean Baudrillard, em Simulacros e Simulação, nos alertaria para a hiper-realidade que se apresenta no debate. Em sua análise do esvaziamento do real, ele revela que, ao nos entregarmos aos argumentos vazios, criamos símbolos e simulacros, distantes do real. O debate se torna, então, uma representação de discussão, onde a luta pelo convencimento suplanta a busca pela verdade. Ele nos diria que, enquanto esperamos uma verdade surgindo entre as palavras, o próprio espetáculo do debate nos cega, e a verdade que buscamos se dissipa.
Em uma sociedade onde o discurso se celebra mais pela aparência do que pela substância, Guy Debord ecoaria, em A Sociedade do Espetáculo, que o debate se torna um espetáculo em si, destinado a entreter e a fragmentar, não a esclarecer. Debord critica como o debate é transformado em entretenimento, mascarando-se como prática necessária. Em A Sociedade do Espetáculo, Debord descreve como o debate moderno é mais um espetáculo destinado a entreter e dividir do que a unir e esclarecer. Ele sugere que o debate se transformou em um ritual social, onde as posições são reafirmadas e o conflito é incentivado para criar um show. Debord critica como o debate se distancia de qualquer propósito transformador, apresentando-se apenas como uma ilusão de engajamento.
Arendt acredita que o espaço público é fundamental para o florescimento da ação e da palavra como forma de revelação do “eu”. Nesse espaço, a palavra pode tornar-se uma força criadora, uma ferramenta de mudança. No entanto, para que isso aconteça, o discurso precisa ser livre de instrumentalizações. Ela nos lembra que o verdadeiro valor da ação está em sua efemeridade — ela é um evento único, que pode desaparecer tão rápido quanto surge. No entanto, é exatamente essa natureza efêmera que dá à ação seu poder de transformação.
A repetição dos debates sem resolução resulta na perda desse potencial transformador, aprisionando a sociedade em um ciclo de falações que se anulam. Para Arendt, a palavra, quando não está aliada a uma verdadeira vontade de ação, perde seu poder libertador, degradando-se em um simulacro de participação que pouco representa.

O Valor da Ação Concreta sobre o Debate Abstrato
A ação, na visão de Arendt, é o que separa o que vive do que está morto, o que move o que está parado. Mas, em uma sociedade obcecada pelo debate e pelo discurso abstrato, a ação se perde como um suspiro breve que jamais será ouvido. Cada palavra dita, quando não conduzida pelo impulso do ato, torna-se um grilhão que nos acorrenta ao mesmo estado de passividade. Arendt observa que o debate é um labirinto construído para manter o espírito em círculos, para desviar a consciência do que é concreto e, portanto, da liberdade. O debate abstrato é uma prisão sem grades, um sonho recorrente do qual ninguém desperta, uma marcha vazia em direção ao próprio fim, onde a ideia de liberdade se torna um fardo, e o peso da inércia sufoca o impulso de agir.
A verdadeira liberdade, para Arendt, é uma possibilidade rara, uma chama instável que só surge na ruptura do previsível, na quebra do conformismo. Mas o debate, quando aprisionado pelas normas do aceitável e do comum, se transforma em um culto ao conformismo, uma repetição do que é seguro e confortável. Arendt contempla com amargura o espetáculo de vozes moldadas e esculpidas pelo desejo de aceitação, de pertencimento a um coletivo que se alimenta do silêncio de cada um. A liberdade se esvai na ordem imposta por esse jogo, onde as opiniões se aglomeram em torno do que é familiar. No final, Arendt conclui que o debate conformista é apenas um teatro onde a liberdade jamais encontra expressão; uma dança circular onde a individualidade é sacrificada no altar do consenso.
O discurso, é mais do que palavra, é a expressão da vida singular de cada ser. No entanto, o que testemunhamos é o esvaziamento da palavra, sua transformação em mero reflexo de uma verdade desgastada, reciclada sem qualquer autenticidade. Cada frase torna-se um artefato, uma construção sem raízes no ser de quem a enuncia. O discurso, desprovido de autenticidade, não tem poder de persuasão nem de transformação. Ele ressoa, mas não atinge. Ele existe, mas não vive. Arendt vê no vazio da palavra moderna a morte da ação, uma traição à possibilidade de criação. E nesse vazio, ela encontra o eco de um tempo sem esperança, onde a palavra, divorciada da ação, se reduz a um espetáculo sem público, um clamor no deserto onde nem o vento se digna a responder.

O título não debatido.
Imagine um salão onde ecoam argumentos que nunca encontram um repouso, como pedras que, arremessadas, rolam colina abaixo sem jamais se fixarem. Ali, cada participante parece prisioneiro de uma inquietação interior, de um anseio febril por convencimento e controle. Em cada palavra há uma insistência desesperada por prevalecer; em cada réplica, o desejo de subjugar o pensamento do outro. Mas, ao final, o que resta é apenas uma pilha de palavras gastas, ideias despedaçadas e fragmentos de certezas, e todos — vencedores e derrotados — saem de cena com a mesma expressão perplexa, como se tivessem sido traídos por suas próprias vozes.
Em sua essência, o debate parece uma construção assombrosa, um mecanismo vazio de decisões. Nos arrasta para dentro de suas engrenagens, de tal forma que nos esquecemos de que há, ou deveria haver, um objetivo final. Esse ciclo de argumentos cresce e se emaranha, se alimentando do próprio vazio, como se a busca pela razão pudesse, sozinha, justificar a ausência de qualquer solução concreta. Tal é a promessa do debate: que, através do confronto intelectual, a verdade surgirá límpida e sólida. No entanto, esta verdade raramente chega, e a verdade que se revela, quando se revela, é muitas vezes deformada, corroída pelo próprio atrito do discurso.
Há algo de profundamente teatral nos debates, uma construção cuidadosa de personagens em oposição, de vozes e personalidades que, a cada réplica, se distanciam da substância da discussão. É como se o debate fosse um palco onde os participantes não mais atuam para encontrar uma saída, mas para ensaiar os seus papéis — papéis que se repetem, presos em uma estrutura que sempre retorna ao ponto de partida, de maneira quase cômica. Mas, ainda que a comédia do debate seja evidente, suas consequências, ou melhor, sua falta de consequências, é trágica. No final, o público — a sociedade, os indivíduos que se deparam com as discussões — se vê envolto numa confusão ainda maior do que antes.
O conceito de debate carrega uma promessa ilusória de solução. Supõe-se que ele possa nos conduzir a uma síntese, que o embate entre ideias opostas permita o florescimento de uma verdade comum. Entretanto, aquilo que surge, se é que algo surge, raramente é uma síntese; é, ao contrário, uma ruptura, uma divisão ainda mais profunda. Pois o debate, por sua própria natureza, alimenta-se da oposição e não da conciliação. Ele se torna, então, uma força que impulsiona para lados cada vez mais divergentes, criando trincheiras onde antes havia talvez alguma abertura.
Nas grandes assembleias, nas praças públicas, nas conversas entre os que se julgam sábios, o debate toma o lugar da ação. Enquanto discutimos, acreditamos estar trabalhando em prol de um futuro mais iluminado, mas estamos, na verdade, acumulando poeira sobre o que deveria ser a substância da mudança. Através da troca constante de argumentos, nos convencemos de que a simples permanência do discurso é um sinal de progresso. Mas será mesmo progresso quando, dia após dia, retornamos ao mesmo ponto inicial, girando em círculos num labirinto de opiniões?
Talvez o problema do debate esteja na própria expectativa que carregamos: o desejo de que a verdade surja espontaneamente, sem a necessidade de uma decisão concreta, sem o peso da responsabilidade de transformar o debate em ação. Esperamos que as palavras falem por si mesmas, mas as palavras não têm poder quando não se transformam em atos. E o debate, esta entidade nebulosa e encantadora, nos mantém acorrentados à fantasia de que a verdade está a apenas uma palavra distante, quando, na verdade, ela se esconde naquilo que evitamos: a vontade de encerrar o debate e partir para a ação.
Assim, em cada sala onde as vozes se sobrepõem, onde os gestos se tornam duros e os rostos se contraem, o debate se desdobra num ciclo interminável. Quem, então, ousaria escapar desse ciclo? Quem ousaria dizer, de forma clara e decisiva, que já basta de palavras, que é hora de encontrar um fim? Pois este, talvez, seja o grande temor: o de que, ao findar o debate, sejamos confrontados com o peso de nossas próprias omissões e com a crua realidade de que, afinal, o vazio do debate é apenas um reflexo do vazio em nós mesmos.
